"Tudo começou na Sexta-Feira da Paixão de 2007. Namorava há dez meses um rapaz que era motoboy e ele me convidou para ir à sua casa, que eu não costumava freqüentar porque cursava direito no período noturno. Sou bolsista do ProUni (Programa Universidade para Todos). Logo depois que chegamos, três policiais armados arrombaram a porta e mandaram a gente se deitar no chão. Deram uma busca e encontraram drogas, balança de precisão e dinheiro lá. Meu namorado morava com amigos – todo mundo foi para a delegacia. Imaginei que logo seria dispensada, pois não devia nada. Mal sabia que o meu pesadelo duraria um ano e dois meses.
Naquela noite, ainda consegui pedir a um vizinho que avisasse minha mãe do que estava acontecendo. Não voltei mais para casa. Fiquei retida na delegacia por 15 dias, numa cela de 2 metros quadrados, lotada de gente – um colchão para quatro pessoas. Para completar, descobri que estava grávida de duas semanas. Fui transferida para uma penitenciária, passei 30 dias trancada em uma cela, incomunicável. Havia lesmas na comida, sofria de enjôos, comia só pão e bebia água. Minha mãe pediu para o advogado conversar com a diretora para autorizar a entrada de frutas, o pedido foi negado. Estava tão desesperada que, apesar de querer o meu bebê, pensei em suicídio.
Sempre fui muito quieta, mesmo assim as presas implicavam comigo, me achavam metida, patricinha Lá é uma mistura danada – mendigas, viciadas,
trombadinhas... Na prisão tem muito lesbianismo, mas nunca ninguém me molestou. Você tem que impor respeito e avisar que não admite esse tipo de aproximação. Muitas cedem porque sentem medo.
Com o tempo, parei de chorar tanto. Parece que o coração vai endurecendo ao ver tanta maldade e humilhação. Aos sete meses de gravidez, fui transferida para outra penitenciária, o pior lugar de todos – a pressão psicológica das agentes e enfermeiras é de enlouquecer: elas ameaçam tomar o filho da gente. Ninguém reclama porque teme represálias.
Apesar da situação, eu sempre quis ter o meu menino. Mas o parto se complicou, minha pressão subiu demais e por pouco nós dois não morremos – os médicos fizeram fórceps, o bebê já estava com o coração parando e tiveram que usar um desfibrilador. Mateus nasceu no final de 2007 e eu caí em depressão. Amamentei-o até os 4 meses, mas os seios infeccionaram. Só obtive autorização para dar leite em pó quando saía apenas sangue e pus de mim.
Eu estava melhorando a cada dia, mas meu filho teve uma crise grave de bronquite por causa da insalubridade do lugar. Percebi que era mais seguro dar a guarda dele para minha mãe. Ao tomar essa decisão, desabei completamente. Fui transferida para outro lugar, em que não conhecia ninguém, olhava para a foto do Mateus e chorava. Tive a sorte de encontrar detentas que me deram apoio, gente boa, solidária. Até hoje ligo para elas para saber como estão.
Finalmente, meu julgamento em segunda instância aconteceu no dia 3 de junho deste ano. Fui absolvida por unanimidade e saí da penitenciária na mesma data, à meia-noite, graças a Deus e a minha mãe, que tinha uma lojinha de artesanato e quase faliu porque só ficava andando atrás de fórum, tribunal. Ela ia à audiência procurar juiz e foi assim que conheceu o Virgílio de Mattos (professor, advogado e criminalista), do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Isso foi decisivo porque eles começaram a trabalhar para mim, fizeram uma defesa espetacular. O antigo advogado, o mesmo que atendia o pai do meu filho, pegou o dinheiro, mas nunca fez nada e, na primeira instância, me deixou ser sentenciada a oito anos e seis meses de cadeia.
No momento em que fui presa, muitas pessoas que se diziam amigas pularam do barco – até meu pai, que é mestre-de-obras e separado da minha mãe. Enquanto isso, ela e meu irmão casado passaram necessidade para me socorrer. Hoje estou em tratamento psicológico, minha memória falha e me sinto agressiva demais. Felizmente, fui muito bem recebida na faculdade, mas ainda estou revoltada contra o Estado – que não poderia ter me deixado presa tanto tempo. Estudo a possibilidade de mover uma ação para reparar todos os danos que sofri, e um professor se ofereceu para me ajudar nessa empreitada.
Levei o Mateus para conhecer o pai na prisão. Apesar de tudo, sei que ele está sofrendo e temos um vínculo familiar. Estou desempregada, mas com o apoio do Virgílio tenho trabalhado na organização de seminários no Tribunal da Justiça e no Conselho Regional de Psicologia. Quando me formar, vou ser criminalista. Quero lutar para impedir novas injustiças e pela dignidade nos presídios. Também pretendo dar aulas a jovens do ensino médio para que aprendam sobre os seus direitos. Sei que enfrentarei dificuldades para retomar a vida normal, mas nada me deterá. Tenho um filho para criar e muitos planos para concretizar.
ROSEANE CRISTINE ROCHA COSTA, 20 ANOS, UNIVERSITÁRIA
Superação
‘Correndo atrás dos sonhos Sempre gostei dos meus pés. Se eles já soubessem que caminho seguir, teriam me levado para longe quando minha mãe me abandonou, recém-nascida, na porta de uma instituição ligada à antiga Febem, em São Paulo. Era 1962. Fui deixada dentro de uma caixa de sapatos. Cresci com muitas crianças, mas sem nenhum amor. Na escola, só aprendi a alimentar o medo. Tenho medo de tudo: de carro, de gente, do escuro. Aos 10 anos, ainda estava na 1ª série. Sentia fome, não tinha vontade de estudar. Aos 18, fui encaminhada para meu primeiro emprego. Trabalhei cinco meses como empregada doméstica, mas a patroa não me pagava. Um dia em que ela não estava em casa, enchi várias malas com objetos de valor e fugi para o centro de São Paulo. Distribuí o que roubei para o povo que vivia na praça da República. “Comprei”, assim, lugar para morar.
Nas ruas, ninguém respeita as mulheres. Mendigos tentaram me estuprar, me bater. Para me proteger, simplesmente raspei os cabelos e me vesti de homem. Em pouco tempo virei líder de um bando de trombadinhas. Eles me chamavam de Tia Punk. Depois de um mês vagando pela cidade, descobri as drogas. No começo, sentia tanta fome e tanto frio que usava o que aparecesse: cola de sapateiro, benzina, gasolina... Com o tempo, essas drogas não me satisfaziam mais. Para mergulhar na cocaína, caí no crime.
Sustentar o vício era uma maratona: roubava comida, roupas, bolsas, ia até a boca, o ponto-de-venda, e trocava tudo por cocaína. Fui presa várias vezes, apanhei para entregar os traficantes, mas nunca falei nada. Eu só não conheço todas as delegacias de São Paulo porque minha especialidade era correr da polícia. Certo dia, em uma dessas “provas de longa distância”, parei em frente a uma loja de eletrodomésticos cheia de televisões na vitrine: em todas passava o filme CARRUAGENS DE FOGO, a história de dois corredores. Falei para os meninos do bando: vou correr assim. Um dos trombadinhas disse que, como eu era viciada em drogas, não conseguiria treinar. Respondi: “Se corro da polícia, também posso correr na rua”.
Com essa idéia na cabeça, “encomendei” equipamento para os amigos do bando, que assaltaram vários atletas. Aos 34 anos, com tênis, bermuda e camiseta roubados, comecei a treinar sozinha e fui parar na maratona de São Paulo. No final dos 42 quilômetros da prova, eu finalmente me encontrei. Era aquilo que eu queria. Mas, para correr, não podia me drogar: passei dias rolando na calçada, amargando a abstinência e as contusões.
Em 1998, eu morava sob as marquises próximas do Parque do Ibirapuera e passei a correr lá. Achava que era invisível para as pessoas da sociedade, mas alguém me enxergou. Era o dr. Fausto Cunha (na época, secretário de Esportes da Prefeitura). Ele percebeu que a corrida podia me recuperar. Me levou para um alojamento de atletas, me ofereceu abrigo, tratamento para conseguir deixar o vício, comida. Adoro ele e sua esposa, visito a casa deles, até Natal eu passo lá.
No início, o técnico Wanderley Oliveira não acreditou em mim. Disse que só ia me treinar se eu largasse todas as drogas, me cuidasse e me dedicasse muito. Sempre cumpri tudo o que prometi. O mais difícil era vencer o meu medo. Nunca aprendi a receber carinho, era arisca como um bicho. Por causa disso, ganhei da turma da corrida o apelido de Animal. E eu treinei como um animal. Corri contra tudo: contra o preconceito, a tristeza, o vício. Sofri demais com o rigor exigido pelo esporte, mas valeu a pena. Cada gota de suor na pista era a minha glória na linha de chegada.
Aos 40 anos, bati dois recordes brasileiros, nos 800 e 1,5 mil metros. Em 2006, venci a meia maratona de Santiago, no Chile; na Argentina, fui a terceira colocada na meia maratona de Buenos Aires. Percorri o Brasil inteiro graças a alguns patrocínios, à ajuda de tantos amigos e, principalmente, aos meus pés.
A primeira que ganhei pendurei no pescoço daquele amigo das ruas que dizia que eu não era capaz de correr sem ter uma arma apontada para mim. Provei a ele que eu posso. Para mim, não preciso provar mais nada.
ANA LUIZA DOS ANJOS GARCÊZ, 45 ANOS, ATLETA
A espera da graça de ser mãe
Simples: nasci de uma união não só de corpos mas, principalmente de almas, de dois corações repletos de amor que decidiram dividi-lo comigo, ou melhor, doar tudo o quanto existia de melhor par aquela “menininha” que acabava de chegar.
Foram nove meses de luta pelo direito de nascer, pelo direito de ter uma família e ser muito amada, e a vida não me negou esse direito.
Tive sorte e muita!!
Pelas mãos do Criador fui levada para o seio de uma família estruturada, sendo entregue, à duas pessoas que, ansiosamente aguardavam por mim, com uma felicidade indescritível, porque esperavam por esse momento muito mais que os nove meses de uma gestação normal.
Ali, naquele instante que entrei naquela que seria definitivamente a minha casa, começou uma história muito feliz.
Meus PAIS, sempre lembram emocionados o momento em que me pegaram em suas mãos e me chamaram de filha, quando então o primeiro e verdadeiro carinho de MÃE e PAI eu pude sentir na minha vida...
A partir daquele dia, nossas vidas mudaram; a casa já há meses estava preparada para a minha chegada, berço, cômoda recheada de roupinhas de bebê, banheira, mamadeiras, latas e latas de leite em pó, já que a amamentação natural estaria prejudicada, brinquedos, enfim tudo à minha espera!
Tamires, esse era o nome escolhido há tempos e, assim foi.
Nos primeiros dias, muitas visitas; parentes, amigos, uma alegria só.
Foram noites e noites em claro, como não poderia deixar de ser, afinal bebês dão trabalho...
O tempo passou, os meses passaram...
Então, pelas mãos sábias e simples de meu PAI aprendi a andar e, dando os primeiros passos sabia que o caminho seria um só: a felicidade.
Depois a fala e, com certeza a emoção quando repeti Papai e Mamãe. Imaginem, para um casal que deseja tanto ter filhos, o que não devem sentir ao ouvir pela primeira vez papai e mamãe?!?!?!
Já um pouco maior, lembro de todas as vezes, e foram muitas, que os meus brinquedos ocupavam toda a casa, todo o quintal, e meu PAI sempre paciente, brincava comigo e, incansavelmente, recolhia cada boneca, cada “panelinha”, cada “caminha”, cada e, cada e, cada... ao final da brincadeira. Acreditem, ele brincava de “casinha” comigo, no auge dos seus cinqüenta e poucos anos;
Lembro, do balanço que ele fez para mim e, como ele adorava me levar às alturas quando me balançava...
Minha MÃE, sempre companheira, dedicada, amorosa, repetia que eu era a filhinha nascida do coração.
Por volta dos cinco ou seis anos, já não me lembro com tanta certeza, até porque isso não fez diferença alguma, quando eu já manifestava certa curiosidade em saber como nascem os bebês, minha MÃE que já por diversas vezes repetira que eu nascera de uma forma muito especial, porque nasci de seu coração e não de sua barriga, me pegou no colo e cheia de coragem me fez entender que ela e meu PAI me pegaram par criar, que quem havia me dado a vida, ou melhor à luz, era outra mulher, mas que isso não poderia mudar nada, porque eu era a filha mais amada e esperada do mundo e, filha legítima, assinando seus nomes.
Para minha MÃE foi um momento muito difícil, mas brilhante. Eu me lembro de ter ficado por alguns minutos, poucos, calada, mas a seguir eu a abracei e a amei ainda mais e, certamente eu era muito, mas muito mais feliz, porque nascera fruto de um amor verdadeiro, fui escolhida, portanto, eu era realmente muito diferente de todos...
A única certeza que tive: eu era muito especial!
Todas as festas de aniversário eram maravilhosas. E os natais? Curtidos, à espera do papai noel com presentes; tenho até hoje bonecas que ganhei dos meus PAIS.
Veio a idade escolar, meus PAIS sempre ao meu lado, firmes no propósito de lutar para que eu, no modo humilde de pensarem, fosse alguém na vida.
Nunca pensava que pelo fato de não ter nascido de uma união carnal entre eles, isso mudaria alguma coisa em minha vida.
Meus PAIS fizeram de mim um ser humano na acepção da palavra; fizeram de mim uma pessoa íntegra, de caráter; com eles aprendi a ser generosa e solidária e a ter amor por tudo e por todos que me cercam, sendo imprescindível a fé em Deus.
Aos que, eventualmente, me perguntaram: como é saber que você não é filha natural de seus pais? Respondi: quem disse que não sou? Sou a filha natural do coração e, por isso inigualável à quem quer que seja.
Nesses dezoito anos de vida, agradeco à Deus por me reservar esse destino, porque certamente fui muito mais feliz do que se podia imaginar.
Tive um lar, um PAI e uma MÃE extremamente amorosos e dedicados e, sem dúvida alguma, eles, depois de Deus, que me deram realmente a vida.
Hoje quero ser mãe, para abraçar, esse sacerdócio que é a maternidade. Trago comigo o mesmo sonho que há quarenta e poucos anos atrás minha MÃE conseguiu realizar.
Sonho em um dia ter em meus braços uma criança e embalá-la, com o mesmo e único amor que tive a felicidade de ter e viver com meus PAIS, dando continuidade à maior missão da mulher que é ser mãe.
Sou o exemplo vivo der que o amor que se pode dedicar à uma criança, que é fruto de uma adoção, é infinitamente maior do que se imagina possível.
A vocês pais e filhos, deixo a minha mensagem e, humildemente o exemplo de uma vida feliz, que tive e tenho, reiterando que o mais importante é a grandeza do amor que se dedica a um filho, não importando se natural ou adotado, pois ele que deve ser o fator determinante da nossa felicidade, porque o restante é muito pequeno diante da nobreza de sentimentos que o Ser Humano é capaz de ter.
Ofereço esse depoimento ao meu PAI, hoje com 73 anos e à minha MÃE com 64 anos, com a eterna gratidão e o infinito amor que sempre nos uniu.